sábado, 11 de setembro de 2021

O fim de um pescador e banhista inveterado

 

                Pescar sempre foi uma grande diversão pra mim. Desde quando menino, passando férias em Maués, Amazonas, na casa de meus avós maternos, eu aprendi a pescar. Preferia linha, embora usasse frequentemente o caniço artesanal. O tempo passou e esse meu “hobby” me acompanhou por onde eu fosse. Até que em 1991, em plenas férias escolares com meus filhos, na praia do Murubira, a bucólica ilha de Mosqueiro, Belém, Pará, este fato aconteceu:

                Em um belo dia, final da tarde, já escurecendo, fui eu e meus filhos pescar na praia do Murubira, que era a mais perto de casa. A maré estava vazando. Me acomodei em uma cadeira de alumínio e comecei a preparar o anzol para a pescaria. Era de linha com um único anzol. Um balde plástico colocado ao lado da cadeira serviria de depósito para a esperada farta pescaria. Isquei com minhoca o anzol, soltei a linha na areia e lancei a primeira linhada! Aguardei atento com o sensor nos dedos ligados. Alguns minutos depois a linha deu uma fisgada. Esperei alguns segundos. De novo, mais uma fisgada. Então eu dei um puxão vigoroso, uma fisgada competente e senti que tinha pego alguma coisa. Puxei toda a linha até a areia. Sim, tinha fisgado um peixe. Um peixe de pele, tamanho médio pra grande. Decidi ficar com ele. Depositei alegremente no balde. Identifiquei rapidamente o dito. Era um bacu também conhecido como abotoado, armadillo, bacu pedra, botado ou roque-roque. Empolgado que fiquei, renovei a isca e lancei novamente a linha na água. Mais alguns minutos depois, nova fisgada. Ops! Parece que a pescaria vai ser boa! – pensei alegre e feliz. Dito e feito! Mais um bacu. E outro. E mais outro. Quando o balde já estava cheio, umas 2 horas depois do início da pescaria, resolvi encerrar a vitoriosa empreitada. Retornamos para casa. Planejei: Vou colocá-los no freezer e amanhã preparei uma bela caldeirada!

                No outro dia, bem cedo, tirei o balde para descongelar os peixes e começar os pré-preparos para a culinária original e saborosamente ansiada. Pra começar vou tirar as tripas dos peixes. Usando uma afiada faca de cozinha fiz um cuidadoso corte no ventre do bacu. Por um descuido providencial o corte alcançou a tripa do bicho e em um brusco movimento, uma coisa pulou de dentro: um tolete de fezes humanas! Não quis acreditar de imediato no que estava vendo. Coloquei o peixe de lado e parti para outro. Agora, deliberadamente fiz o corte profundo da tripa do outro bacu. E novamente novo tolete apareceu! Não teve jeito! Peguei “corda” e decidi descartar todos os peixes que tinha alegremente pescado na véspera! A caldeirada tão aguardada foi pro brejo, ou melhor, pro lixo!

                Na hora do banho, ainda com a maré vazando, retornamos à praia do Murubira. Desta vez só para tomar banho e se divertir. Nada de pescaria! Mesmo assim, eu muito curioso e invocado que estava, resolvi tirar a prova dos nove. Comecei uma atenta caminhada pela linha da maré observando o que tinha na água trazida pela maré. Desgraçadamente alguns passos adiante, vi com os meus olhos que um dia a terra irá de comer, uma coisa que rolava compassadamente, indo e vindo na areia molhada na linha de maré: um tolete, dois toletes, três toletes! Se por um lado me decepcionei em constatar que o homem está poluindo o ambiente com seus dejetos, por outro fiquei feliz em saber que o bacu está tentando eliminar essa mesma poluição ao ingerir os toletes humanos. Esses foram os grandes motivos de encerrar a minha diversão como pescador e também como banhista nessa praia! Nunca mais quis saber de pescar ou tomar banho de praia, pelo menos nessa bucólica praia…

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Publicado em 13 de agosto de 2021 em WEBARTIGOS


Trilhas da Ecologia

Homenageio e reverencio os meus queridos e saudosos mestres

Rubens Rodrigues Lima (Agricultura Geral); Humberto Marinho Khoury (Botânica);

Batista Benito Gabriel Calzavara (Silvicultura); Alda de Melo e Silva Monteiro (Botânica);

Natalina Tuma da Ponte (Química Agrícola e Fertilidade); Eurico Pinheiro (Agricultura Especial);

Lúcio Salgado Vieira (Solos) e Ítalo Cláudio Falesi (Solos)

que em suas interessantíssimas aulas práticas

me apresentaram as importâncias, as belezas

e as histórias desses lugares.


Tornar a disciplina de Ecologia Básica realmente ecológica foi a minha decisão ao implantá-la no novo currículo de graduação de agronomia da então FCAP, hoje UFRA, lá pelos idos de 1978-80. Daí a minha disposição de ir ao campo, isto é, à Natureza e planejar as aulas práticas. Optei em começar pelo campus da faculdade ao meu redor. Sem necessidade de pedir transporte, etc. Caminhando mesmo – é certamente mais ecológico! Daí, hoje posso apresentar todas as trilhas por onde, algum dia – ou vários deles – passei. Eu e meus estudantes. Vejamos:

Trilha 01: Ecossistema de Várzea do Estuário. Do prédio central até a margem direita do rio Guamá. Seguir pela direita até encontrar a estrada ao lado direito do canal, já na várzea; Na margem direita da estrada, vegetação de igapó e várzea. À esquerda, plantio de arroz irrigado; Alcançar a margem do rio Guamá. Na beira do rio, à esquerda, as marachas, sobre elas o plantio de açaizeiros anões e os diversos tabuleiros de plantio de arroz irrigado. À frente, a margem direita do rio Guamá mostrando o vai e vem das marés. Sobre o solo muitas sementes de plantas trazidas pelas marés, galhadas, folhas e muito lixo urbano. Descrição sumária: Depois de circular pelas marachas da várzea, a turma se dirigia para a área aterrada destinada ao retorno de veículos, ao pé de um açacuzeiro, formava um círculo, todos sentados e um pequeno debate sintetizava a aula. O tema era: Onde estou? Com o auxílio do então famoso e útil catálogo telefônico anual impresso aberto na página que continha o mapa da cidade de Belém, o debate rolava… Apontava para o mapa para mostrar o formato que a imagem da localização da cidade de Belém apresenta – um cotovelo – onde há a foz do rio Guamá e a baía de Guajará – e reforçava a comparação fazendo o gesto de dor no cotovelo. Quase todos riam e finalmente ludicamente entendiam o ponto original e a expansão da cidade…

Trilha 02: Ainda tendo o prédio central como ponto de partida, a trilha começava indo em direção da Zootecnia, o prédio mais afastado de então. Atravessava-se uma pequena ponte de madeira sobre outro canal na várzea, aberto nos idos de 1954. Até então o solo por onde caminhávamos era revestido por piçarra e suas margens ocupadas por vegetação secundária e pasto. Poucos metros adiante chegava a várzea onde o solo era lamacento e pegajoso e com bastante água das frequentes chuvas e das marés que lá chegavam. A vegetação aqui era de floresta de várzea “mexida”, ou seja, já explorada. Avistavam-se alguns pés de samaumeiras e açacuzeiros, além da palmeira açaí. Caminhava-se apoiando-se em troncos às margens de uma pequena trilha que mal passava um pequeno trator sempre encharcada de água. Depois de 20 a 30 minutos, alcançava-se a margem do igarapé Murutucum. O destino final eram as Ruínas do Engenho do Murutucum. Por algumas daquelas inexplicáveis coincidências, as duas margens do igarapé eram ligadas por um volumoso tronco de uma árvore tombada, faz tempo, o que facilitava em muito a travessia do igarapé sem se molhar... A missão de todos era atravessar o igarapé por cima do tronco. Claro estava que eu sempre dava o exemplo… Alguns mais afoitos e certamente com maior vigor físico, passavam na minha frente e rapidamente alcançavam o outro lado. Se postavam e auxiliavam os demais na conclusão com sucesso da travessia. E ái daquele/que escorregasse e caísse na água!!! Era risada geral! Já na outra margem do igarapé a trilha se estreitava acentuadamente. Esses locais eram visitados costumeiramente por coletores locais de frutos e sementes das árvores da várzea, especialmente os deliciosos frutos do açaizeiro, aí muito frequente. Com esta facilidade na logística chegávamos alguns minutos depois nas ruínas do Murutucum. Alçávamos o muro de arrimo do que teria sido o porto do engenho, vislumbrávamos a capela e mais à esquerda uma torre de tijolos, quase toda revestida pelo cipó apuí (estrangulador) que fazia parte do engenho, cuja mecânica de então, aproveitava a energia das marés através de uma grande roda d’água instalada em um canal de desvio do igarapé, também construído na época. Aqui, só imaginávamos a cena visto que a roda d’água não existia mais… Finalmente adentrávamos a capela e em seu interior comentávamos sobre a história do lugar. O retorno se dava quase pelo mesmo trajeto. Precisávamos atravessar de novo o igarapé. Diferenciava apenas na sua parte final em que seguíamos pelo lado direito de uma cerca de arame farpado que indicava o final da área da FCAP e início da área pertencente à EMBRAPA. Desembocávamos então numa velha estrada onde existiam os prédios da avicultura, cunicultura, apicultura, dentre outros. Enfim, chegávamos na estrada asfaltada que nos levaria até o prédio central, ponto final da aula.

Trilha 03: Ecossistemas de Floresta de Terra Firme, Várzea, Igapó e Lagos. Era uma das mais longas trilhas. Durava cerca de 04 a 05 horas! Correspondia toda a sequência de ida da trilha 02 até as ruínas do Murutucum. Aqui, nas ruínas, era a primeira etapa. Alcançávamos a estrada da CEASA, atravessávamos o seu portão principal e rumávamos adiante. Cerca de 50 a 100 metros pra frente, entrávamos no portão da EMBRAPA, que se mantinha quase sempre aberto e rumávamos em direção às duas áreas muito bem estudadas desde os primórdios do Instituto Agronômico do Norte, IAN, antes mesmo que a Escola de Agronomia da Amazônia, E.A.A. fosse fundada: A Área do Mocambo e a Área de Pesquisas Ecológicas do Guamá, APEG. Muitos cientistas de renome mundial lá estiveram, coletaram materiais e a estudaram, como os botânicos Murça Pires, Adolpho Ducke, George Black, Humberto Marinho Koury, Normélia Vasconcelos, Paulo Cavalcante, Paul Ledoux, Ricardo Fróes, dentre outros. Na margem esquerda desta estrada eram pastos e no direito, florestas. Das duas, a preferida era a APEG, que além da vegetação estar catalogada, iriamos observar diversas estruturas – em ruínas, infelizmente – que testemunham o quanto de ciência e pesquisa lá se passaram. A trilha era bem sinalizada. Percebíamos claramente o rumo a seguir. Algum tempo depois de dentro estarmos, nos deparamos com as ruínas de uma casa de madeira com pilastras em tijolo. Era a casa de apoio e laboratório para os pesquisadores. Próximo dela uma construção arrojada para a época: Uma torre de estrutura metálica, tipo andaime, que alcançava até acima da copa da árvore mais alta do lugar! Ainda víamos nessa plataforma, um conjunto de instrumentos de climatologia. Devido os assoalhos dos diversos andares serem de madeira e pela pouca ou nenhuma manutenção dada à edificação histórica, não encorajava a subida, embora, mais uma vez, alguns mais afoitos à escalassem. Fazíamos diversas paradas e abordávamos o ambiente ao redor. Uma grande árvore tombada nos dava chance de discutir o sistema radicular como estratégia para se manter os vegetais em pé nos frientos e lamacentos solos aluviais das várzeas do estuário amazônico. Pela trilha seguida eram muito frequentes avistar umas plaquetas de alumínio fixadas nos troncos das árvores, que indicavam a catalogação das mesmas nos inventários florísticos pioneiros lá realizados. O ponto final desta trilha se dava no momento em que a paisagem se tornava repetitiva em demasia e o cansaço começava a aparecer. Depois de um pequeno intervalo para descanso e merenda, retornávamos pelo mesmo trajeto de ida. Chegávamos exaustos na FCAP!

Trilha 04: Esta sem dúvida a mais extensa de todas elas. Além de todo o conteúdo mostrado na trilha 03, acima descrita, esta incluía os ecossistemas aquáticos de lagos e igarapés do estuário.

Saíamos da floresta de várzea localizada na APEG, pegávamos a estrada de piçarra conhecida como estrada da Fazenda Velha da EMBRAPA e seguíamos em frente, em direção dos lagos da Água Preta e Bolonha. Certa altura, na margem da nossa direita, vislumbrávamos estruturas que canalizavam as águas do rio Guamá para o interior do lago da Água Preta. À esquerda, pastos. Alcançávamos algumas centenas de metros adiante o lago. Rumávamos para o salão construído projetado em sua margem que abria um cenário completo de todo o lago. Nesse prédio funcionava então o clube campestre dos funcionários da COSANPA. Era aí que abordávamos os primeiros conceitos sobre os ecossistemas de lagos de várzeas. Descansados, continuávamos a aula. Ainda na margem do lago da Água Preta, agora bem na beira da lâmina d’água, comentávamos sobre a importância da manutenção das matas ciliares e da vegetação da margem de um lago. Aningas e muitos capins canaranas além de macrófitas dominavam a paisagem. Comentávamos sobre o efeito da eutrofização de um corpo d’água e especificamente a importância deste lago para o abastecimento de água para a capital paraense. Certa vez, por indicação de um dos participantes que presenciou a cena, foi feita a coleta de lixo urbano acumulado em sua margem… Ao fundo, avistavam-se algumas casas na beira do lago… Era um sinal evidente de invasão urbana lá pras bandas de Ananindeua… A trilha seguia adiante. Mais adiante outro lago, o Bolonha. Neste viam-se as construções para a captação da sua água e seu transporte para a estação de tratamento da COSANPA localizada mais adiante. Aqui, os comentários sobre a estrutura e função dos lagos e sua importância estratégica para a preservação e conservação de um recurso natural inestimável, a água, era debatido com muita ênfase e preocupação. Finalizada a abordagem, rumávamos adiante, já com aula dada como encerrada e alcançávamos a av. Júlio César logo depois de ultrapassarmos os portões da COSANPA. Nestas alturas o relógio marcava cerca de 13 horas! Algumas vezes, quando coincidia da aula ser no sábado. O momento de congraçamento se passava em algum pequeno bar de calçada… Mas essa é outra história…

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Publicado em 13 de agosto de 2021 em WEBARTIGOS



sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Um jovem vegetariano em apuros

                A missão era fazer o reconhecimento da Estação Ecológica de Maracá-Jipioca (SEMA/MMA), localizada na costa do então Território Federal do Amapá. A equipe formada por mim, um colega de botânica, outro de pesca e mais um monitor da ecologia da então Faculdade de Ciências Agrárias do Pará, FCAP, hoje Universidade Federal Rural da Amazônia, UFRA. Fomos para Macapá em voo comercial. De lá seguimos por estrada – BR 156 – até a cidade do Oiapoque, ponto mais setentrional, mais próximo da estação e de onde embarcaríamos em um barco pertencente ao governo do Território para finalmente chegarmos na estação. O gestor local da estação nos prestou assistência logística e também acompanhava a expedição. Antes da partida de Macapá, porém, o coordenador do Projeto Rondon, campus do Amapá, nos procurou pedindo que a gente deixasse um jovem estudante paulista que estava acantonado no campus ir com a gente na expedição. Concordamos prontamente. Na hora prevista da partida o rapaz chegou acompanhado do coordenador que nos informou ser ele vegetariano e que só comeria vegetais. Mostrou-nos uma enorme saca de aniagem cheia dos alimentos (frutas, hortaliças, arroz, feijão, farinha, etc.) que foi em seguida embarcada na camionete de nossa viagem. Partimos.

                Chegando em Oiapoque (cerca de 600 km de Macapá) fomos para o escritório da base da estação aguardar a chegada do barco do Território mais adequado, que faria o trecho aquático e o restante da expedição até as ilhas de Maracá e Jipioca. O primeiro dia anoiteceu e o barco não chegou. A comunicação telefônica entre a cidade de Oiapoque e Macapá era quase impossível. O que nos valeu foi eu ter levado o meu rádio amador PX portátil e uma antena. Instalei na bateria da caminhonete e comecei a “chamar” por Macapá. Finalmente, através de uma “ponte” com um colega PX consegui saber que o barco do Território já tinha partido para o Oiapoque. O dia terminou e o barco nada de chegar. No outro dia insisti e novo contato foi estabelecido. Afirmei que o barco não tinha chegado ainda. Foi aí que tomamos conhecimento que o dito tinha encalhado e por isso não conseguiu chegar em Oiapoque. Sabendo disso, conversei com a equipe e decidimos alugar um barco local para finalmente cumprir a missão.

                O barco alugado era bem pequeno, mas o maior lá disponível. Satisfazia as nossas necessidades mínimas. O colega da botânica desistiu de continuar a viagem alegando compromisso e voltou pra Belém. Estávamos no quarto dia da viagem quando partimos finalmente em direção às ilhas. De saída, percebemos que a correnteza nessa parte da costa oceânica era bastante intensa. O barco que viajávamos encarava as enormes ondas de proa. Em alguns instantes só víamos água na nossa frente. Todos os embarcados usávamos os coletes salva-vidas. Decidimos com a ajuda do comandante atravessar na altura do igarapé do Inferno – o nome já diz tudo – que separa as duas ilhas. Segundo ele, a maresia era bem menor e poderíamos fazer as observações ambientais necessárias com mais calma e segurança. Assim fizemos. Já estava anoitecendo quando decidimos ancorar na entrada do igarapé, um ponto mais calmo com pouca maresia. O marinheiro que ajudava o comandante era também o nosso cozinheiro. O cardápio era sempre ou quase sempre feijão com arroz, farinha e charque. O jovem vegetariano, porém, dele não participava. Sentava-se no convés, pegava o sacode aniagem, desamarrava-o e tirava o que ia comer. Algumas frutas, cenouras e outras. Assim era a rotina da viagem.

                Já estávamos no sexto dia. Tínhamos feito todo o perímetro de Jipioca, a menor das duas ilhas. Agora iríamos fazer o de Maracá. Rumamos em frente pelo igarapé do Inferno. Ao chegarmos no ponto mais afastado do litoral, ou seja, em mar aberto, a coisa pegou. O pequeno barco chacoalhou tanto que decidimos não encarar as grandes maresias. O vento era forte demais! Recuamos e ficamos ancorados na boca do igarapé. Segundo o comandante, a maresia pela manhã era menor. Acatamos a sua informação e pernoitamos aí.

                Todos os dias pela manhã, eu tentava comunicação através do rádio PX, mas em vão. Já na hora do almoço deste sétimo dia, – em nosso planejamento era o último da expedição – observamos que o jovem vegetariano não comera nada. Oferecemos a nossa “boia” mas recusou e mostrou o que tinha sobrado em seu saco dispensa: cinco ouriços de castanhas-do-pará!

                – Eu não sei comer isso! – falou ele, meio desanimado e encabulado.

Nos entreolhamos e o comandante sabiamente disse:

                – Pra comer tem que abrir o ouriço. Dentro dele é que estão as castanhas-do-pará!

O jovem vegetariano fez cara de não saber como abrir o pixídio, ou cumbuca. Aí, o comandante pegou um terçado que guardava no armário da cozinha do barco e ensinou ao jovem vegetariano como abrir o ouriço e assim alcançar as castanhas-do-pará. O jovem vegetariano tomou para si a tarefa e começou a abrir um ouriço, o maior, segundo ele, para comer as castanhas. Acho que demorou quase uma hora para abri-lo visto que o material era duro e ele não tinha nenhuma habilidade no uso do terçado. Oferecemos o almoço para ele, mas ele, intransigente e decidido, optou pelo alimento vegetal. Eram quase quatro da tarde quando ele conseguiu abrir o primeiro e quiçá o único ouriço de castanha-do-pará daquele dia. Mas o alimento ainda não estava pronto para ser ingerido. Faltava tirar os pericarpos – cascas – das sementes. O jovem, já bastante suado, não desistia. Oferecemos mais uma vez a comida do almoço e ele, irredutível, respondeu de novo “não”. Seguimos viagem.

                No dia seguinte, completada cerca de 70% da missão – faltou fazer a parte de fora da ilha maior – Maracá – decidimos retornar para o Oiapoque e encerrar a expedição. Nas últimas refeições no barco, finalmente o jovem vegetariano pediu arrego. Só tinha aberto mais um ouriço de castanha-do-pará, porém, a fome falou mais alto. Passou a alimentar-se de nossa comida até, enfim, chegarmos de volta a Macapá: charque com feijão, arroz e farinha grossa à vontade!

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Publicado em 15 de junho de 2021 em WEBARTIGOS


A minha primeira aula na faculdade

 

                Acordei por volta das 6 horas. Tomei banho, vesti a bata personalizada com a logo da agronomia, que minha mãe generosamente confeccionou, recolhi os materiais escolares indispensáveis para a primeira aula de desenho (saudoso mestre Almir), tomei café e rumei serelepe para a parada de ônibus, que ficava a um quarteirão de casa, na 16 com a Veiga Cabral. Ansioso, esperava a chegada do Tamoios, a única linha de ônibus urbana cujo ponto final era o prédio central da então Escola de Agronomia da Amazônia, EAA, que logo em seguida passou a se chamar de Faculdade de Ciências Agrárias do Pará, FCAP, e hoje é a Universidade Federal Rural da Amazônia, UFRA.

                O ônibus não demorou. Subi pela porta traseira e me acomodei no primeiro banco livre que encontrei, acomodando a enorme régua tê e esquadros. O veículo seguiu pela avenida 16 de Novembro. Minutos mais tarde, o cobrador, fazendo o téc-téc-téc característico do atrito de duas moedas colocadas em uma de suas mãos onde se via também algumas cédulas de papel dobradas longitudinalmente – estes eram os sinais do cobrador – veio me cobrar a passagem, o que fiz em um simples gesto, visto que o numerário já estava reservado certo em uma de minhas mãos.

                O ônibus seguiu. Mais adiante, três quarteirões, subiram outros estudantes. Eram os moradores da Casa do Estudante Universitário do Pará. E mais outros. Até então, a lotação do ônibus estava maneira, todos viajavam ainda sentados. Alcançou finalmente a Av. Portugal, dobrou na Av. Castilhos França, esquina com o famoso Mercado do Ver-o-Peso e rumou, sempre numa velocidade agradável, o que permitia ver e acompanhar os movimentos dos pedestres e as rotinas de abrir as lojas do comércio. Subiu a pequena ladeira do começo da av. Presidente Vargas e mais alguns estudantes embarcaram. A lotação de passageiros se equilibrava, pois enquanto os estudantes subiam, muitos comerciários desciam rumo aos seus empregos.

                E assim seguia o ônibus até alcançar a av. Nazaré. E o sobe e desce de passageiros continuava. Vez por outra, acomodava os materiais de colegas que tinham embarcado, porém, estavam em pé no corredor do ônibus. Por ter no itinerário diversos colégios, o ônibus mantinha-se nem tanto cheio, nem tanto vazio. Alcançou a av. Independência (atual av. Magalhães Barata), daí a av. José Bonifácio e por fim o Mercado de São Brás. Aqui, muitas pessoas subiam vindas do mercado e da feira de São Brás, ali próximo.

                Nessas alturas, podia dizer que estava saindo do centro e chegando nos bairros mais afastados do Marco e Souza. O Tamoios finalmente alcançou a av. Tito Franco (atual av. Almirante Barroso). Parece que nesta altura os intervalos das paradas se tornaram mais compridos, porém, ainda alguns estudantes subiram no ônibus. Chegou enfim a trav. Itororó (atual trav. Enéas Pinheiro), bem em frente ao Bosque Rodrigues Alves, e nela o ônibus dobrou à direita. A essa altura, o relógio batia as 7 horas.

                Mais alguns estudantes, funcionários e professores da FCAP tomavam o ônibus, especialmente na parada da esquina com a av. Primeiro de Dezembro (atual av. João Paulo II). Ao fundo já se avistava o portão do Instituto de Pesquisas Agropecuárias do Norte, IPEAN, hoje EMBRAPA Amazônia Oriental. Dentro do veículo restavam quase 100% só de estudantes, funcionários e professores da EAA/FCAP/UFRA. Agora o papo corria mais solto ainda. Os veteranos encarnando nos calouros e o ônibus seguia pela estrada em direção do prédio central.

                Depois de passar por diversas paisagens, até então desconhecidas pra mim como um pequeno lago, um cultivo de cumaru, dendê e seringueira, finalmente por volta das 7h15 cheguei ao prédio central, onde ficava o ponto final da linha do Tamoios. Desci ansioso e quase correndo fui em direção da sala de Desenho, na ala de Engenharia, para participar finalmente da minha primeira aula na faculdade! 2 de março de 1970, segunda-feira!

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Publicado em 05 de maio de 2021 em WEBARTIGOS

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Eita, mundo estranho!

 

                Moro no endereço atual há mais de trinta anos, exatamente desde o dia 17/12/1989, um domingo. Por castigo da instituição em que eu trabalhava, participei com presidente pela primeira vez, de uma sessão eleitoral. Era o segundo turno da eleição presidencial, onde Fernando Collor foi eleito presidente do Brasil. Enquanto eu trabalhava na eleição a mudança era feita a bordo de uma velha caminhonete Bandeirantes, apelidada de Clorofila.

                Hoje, dezembro de 2020, trinta e um anos depois, em pleno isolamento social imposto pela pandemia do COVID-19, constato uma real situação social: Só me relaciono com 10,29 % dos moradores do prédio. Em números absolutos, apenas sete vizinhos, dos 68 apartamentos existentes e ocupados. Quando digo me relaciono, é que sei os seus nomes e apartamentos. Trocamos mensagens pelo WhatsApp, nos telefonamos, interfonamos e eventualmente papeamos, ou durante a viagem do elevador ou lá embaixo, no playground. Visitas físicas são raras. Os outros 89,71% (61 moradores), eventualmente respondem aos cumprimentos nos ambientes comuns do prédio como portaria, salas de estar, playground, garagem e elevador.

                Ai, me veio mais uma vez, as sábias palavras do Papa Chico: “Fica anos sem conversar com um vivo e se desculpa, faz homenagens, quando este morre” A carapuça mais uma vez cai sobre a minha cabeça. Realmente é estranho. Poderia justificar que seria o estilo de vida do mundo atual, a correria do trabalho, as atrações das televisões, comodismo, etc. Mas…

                De novo lembro das palavras do Papa Chico: “… Não tem tempo para visitar o vivo, mas tem o dia todo para ir ao velório do morto”… E penso: – São tão próximas as portas de entrada. Ás vezes no mesmo andar, outras vezes alguns andares acima ou abaixo… Não tem a dificuldade de estacionar o automóvel, de pegar chuva ou até de ser abordado por um assaltante…

                Esta constatação me veio à tona, pelo simples fato quando decidi – como tenho constantemente feito – de contrariar as palavras do SumoPontífice, ao compartilhar com alguns vizinhos, as plantas que cultivo em Meu Nano Viveiro, aqui na mínima sacada do apê, presenteando-lhes neste Natal e Final de Ano.

                É inevitável lembrar de minha infância e juventude passadas morando em uma casa térrea, simples, no bairro da |Cidade Velha, Belém, Pará, quando os vizinhos preocupavam-se uns com os outros:

                – Fulano! Tu deixastes a luz ligada! Ou: – Sicrano! Esquecestes o portão aberto e o cachorro fugiu pra rua! Ou ainda: – Beltrano! O Zé dos Correios passou e como não estavas em casa, eu recebi uma carta endereçada a ti. Frequentemente trocavam-se alimentos. A vizinha mandava um quitute que acabara de fazer para a gente experimentar. E a gente retribuía. Nas festas juninas, o quarteirão todo se reunia e fazíamos juntos os arraiais, com comidas, decorações e quadrilhas comunitárias.

                Ah, devo lembrar que passei cerca de sete anos morando com a família em Soure, Pará. De 2010 até 2017, lá morei. E esse comportamento social que na capital parece extinto, lá ainda vigora! Os vizinhos se preocupam com os seus vizinhos. Claro, sempre pode acontecer alguma discussão, quando o cachorro invade a casa e vai catar comida na cozinha. Ou quando o gato, descobre o peixe em cima do jirau no quintal… Mas sempre são solidários na alegria e na tristeza; na safra ou na escassez. Como comi manga rosa da vizinha…

                Quando voltei a morar em Belém em 2017, depois de ter passado sete anos em Soure, Pará, decidi exercitar rotineiramente o comportamento que lá tinha reaprendido, o de manter uma política de boa vizinhança e cordialidade com meus vizinhos. Os resultados, porém, agora conhecidos, me fazem exclamar: – Eita, mundo estranho!

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Publicado em 12 de janeiro de 2021 em WEBARTIGOS

A maior coincidência do mundo!

 

Homenageio o meu saudoso tio e padrinho,

João Sobrinho Gondim, o Joca.


                O ano era 1972. Estava eu em São Paulo, capital, alojado no Estádio do Pacaembu. Fazia parte de uma operação nacional do Projeto Rondon. Aguardava a partida para a cidade onde atuaria, Tarabai. Eu e um monte de universitários. Eram todos estudantes do Norte e Nordeste brasileiros. Eu cursava agronomia em Belém. Eram feitas reuniões diárias a fim de organizar os deslocamentos das equipes para os municípios paulistas que receberiam o Projeto Rondon.

                Em um dos intervalos das diversas reuniões do grupo todo, eu e mais dois colegas de equipe, decidimos passear pela cidade, enquanto a hora da partida para o interior não chegava. Resolvemos ir caminhando para conhecer o centro da capital paulista. Rodamos extasiados com a verdadeira cidade de concreto. Prédios e mais prédios. Por volta de meio dia resolvemos voltar para o almoço. Como disse, todos estudantes universitários e sem grana pra comer sequer um sanduíche. Foi na caminhada de volta para o alojamento do estádio que tudo aconteceu. Já eram quase meio dia e precisávamos almoçar.

                Retornávamos calmamente pela rua Beneficência Portuguesa, centro, quando de repente passa em nossa frente em direção ao meio-fio, um senhor de paletó. Cruzamos sem parar. Porém, milésimos de segundos adiante, minha memória aflorou de forma límpida e cristalina e disparou um sinal como se fosse uma sirene:

                – Eu conhecia aquela pessoa!-- pensei. Ao mesmo tempo voltei o rosto em direção a ela e instintivamente gritei!

                – Ei, Tio Joca! – Dei um grito sem pensar ou avaliar a situação de um possível constrangimento. Ele bruscamente parou, virou-se pra mim e sorrindo escancaradamente, me respondeu:

                – Você é o Carlos José, filho do mano Lindalvo, que mora em Belém do Pará?! – falou ele. Não deu tempo nem pra responder. Nos abraçamos. – Vamos, venham comigo. Vamos almoçar em casa! – falou ele abrindo a porta do carro que estava estacionado bem em frente da gente. Seguimos todos. Apresentei meus colegas a ele, contei de nosso objetivo ali e começamos a conversar. Uma conversa amistosa, alegre e cheia de recordações. Relembramos a última vez que tínhamos nos encontrado presencialmente, como se diz hoje. Quase dez anos atrás. 1965! Eu tinha quatorze anos! E assim fomos. Meus colegas ficaram a maior parte do tempo calados, talvez, tentando entender toda a inusitada situação.                     Ao aproximar-se de sua casa, alguns minutos adiante, ele começou a manobrar para estacionar. Abruptamente reacelera o carro e não para. Ficamos todos espantados sem entender o que estava acontecendo. – Tão vendo esses dois – falou ele apontando para dois sujeitos que vinham em passos acelerados em direção ao carro do meu tio. – São bandidos! Iriam nos assaltar! Engolimos em seco e seguimos com ele. – Vou dar a volta no quarteirão e esperar eles sumirem. E assim ele fez. Voltamos e estacionamos, agora em segurança na frente da casa do meu padrinho Tio Joca. Almoçamos todos, conversando e relembrando a família. O resto do dia foi só alegria e recordações.

                Ao final, ele foi nos deixar na frente do Estádio do Pacaembu. Penso que esta tenha sido a maior, das maiores coincidências de minha vida!

Com esta publicação presto homenagem ao saudoso colega Tito Lys Batista de Souza, que comigo estava na ocasião deste inusitado fato.

Para saber mais, clique sobre as palavras sublinhadas em vermelho.


Publicado em 09 de setembro de 2020  em WEBARTIGOS

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

O Bloco do caranguejo leite

 

"Eu sou o caranguejo leite,
Respeite o meu viver,
Estou correndo perigo,
Não mexa comigo,
Que eu também quero crescer!"


                Essa era a marchinha composta pelo Antônio Juraci Siqueira, poeta, escritor e educador, que puxava o Bloco do Caranguejo Leite no carnaval de Soure, Pará, anos atrás! De repente, veio a ideia de fazer no mundo dos Humanos, o que a Natureza faz nessa mesma época: o Carnaval! O Ucides, sai pra acasalar e pra crescer! E quando ele está crescendo, o corpo dele fica todo mole e leitoso, daí o nome de caranguejo leite, apelido recebido dos extrativistas dos manguezais, os caranguejeiros! Mas não é um leite da teta de búfala, não! É um leite de matéria orgânica e mineral que torna a carapaça, ou melhor, o exoesqueleto, ou ainda mais diretamente, a casca dele, mole e leitosa, como se de leite fosse. Pois bem, o Bloco do Caranguejo Leite pegou as ruas e travessas da cidade. Composto por 2 carros, ou seja, uma carroça puxada por búfalo e uma velha caminhonete Toyota Bandeirante, que tinha o apelido de “Clorofila”. Os brincantes iam atrás, sem abadás, mas com uma camiseta customizada do bloco. E cantavam: “Eu sou o caranguejo leite…” 

                A fanfarra do Mestre Cupijó animava a todos. Na carroceria da velha Clorofila vinha a performance do Caranguejo-Leite. Um dos brincantes, assumiu o papel do caranga e em gestos quase eróticos e obscenos, se contorcia dentro de uma bacia, ao mesmo tempo que com uma cuia, tomava banho de leite, do mais puro leite de búfala, diga-se de passagem, simbolizando o crescimento do crustáceo. E o cortejo seguia alegre e feliz. Mais atrás, vinha a carroça do búfalo. Na sua carroceria, um caldeirão instalado sobre um fogareiro em brasas, oferecia o mais autêntico e revigorante, pra não dizer afrodisíaco, Caldo de Turu para todos! 

                E a fuzarca seguia, alegre e feliz. A evolução era cadenciada, nem muito rápida, nem muito lenta. O destino era a Quarta Avenida, – ou será a 4.ª Rua, onde estava instalado o palanque das autoridades para assistir ao desfile oficial. De repente, na altura da Décima Sexta Travessa quase esquina da 3.ª Rua, o inesperado aconteceu: O carro de búfalo que carregava o Caldo de Turu, sacolejou quando uma de suas rodas caiu em um incauto buraco derramando todo Caldo de Turu! Ugh! Ugh! O cortejo parou. O caldo de turu inevitavelmente escorreu todo pro chão sujo sem a mínima possibilidade de ser sorvido…

                Sem chorar pelo caldo derramado, a trupe carnavalesca continuou. A performance, porém, do Caranguejo Leite, continuava a chamar a atenção dos observadores boquiabertos. Alguns mais afoitos e incrédulos, mandavam a molecada fazer a prova dos nove pra ver se realmente era leite que escorria do corpo do caranguejo, quer dizer do humano transfigurado em caranguejo. 

                Finalmente, o bloco chega ao sambódromo de Soure, na Marquês de Sapucaí, digo, na Quarta Avenida, digo, 4.ª Rua. Apoteose triunfal do bloco com a carroça do búfalo sem o caldo do turu, mas com um caranguejo completamente leitoso e crescido, que seguiu alegre e feliz até a dispersão final do bloco cantarolando…


"Eu sou o caranguejo leite,
Respeite o meu viver,
Estou correndo perigo,
Não mexa comigo,
Que eu também quero crescer!"


Para saber mais, clique sobre as palavras sublinhadas em vermelho.

Publicado em 07 de fevereiro de 2020 em WEBARTIGOS

Divulgação do Livro Amazônia: Do Quase Paraíso Verde ao Provável Deserto Vermelho e Cinza

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